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Natal é tempo de festa: o Sacramento de Deus nos foi dado!
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Jesus nasceu. Este é o mistério mais essencial do Natal, a Festa da Natividade de Nosso Senhor. Ao longo da história do cristianismo, desde suas origens que estão refletidas no Novo Testamento, a percepção de como tal evento do nascimento de Jesus se deu ou o que significou demonstra-se múltipla
Podemos perceber esta multiplicidade através da leitura atenta destes textos que compõem o Novo Testamento. O Evangelho de Marcos, por exemplo, não fala nada sobre o nascimento de Jesus ou sua origem. Em Marcos, Jesus “aparece” ao lado de João Batista à beira do Jordão. Não é um pressuposto de Marcos, e nem este conceito se constrói ao longo de sua redação, que Jesus seja Deus encarnado.
Já Mateus e Lucas se preocupam com a infância de Jesus, e apresentam duas variações de um anúncio, feito por meio de um anjo, da parte de Deus sobre a origem de Jesus e seu papel no mundo. Em Mateus, o receptor do anúncio é José, identificado como pai de Jesus, enquanto Lucas compõe a cena da anunciação em torno de Maria, sua mãe. Para Richard Bauckham, ambas composições podem ser uma necessidade dos próprios textos devido às escolhas estilísticas de Mateus e Lucas, que aproximam seus evangelhos das biografias gregas e latinas, nas quais era habitual que grandes heróis tivessem seus nascimentos anunciados previamente por seres angelicais. Novamente aqui, Jesus é apresentado como um “Filho de Deus”, mas não como “Deus encarnado”.
João, por outro lado e a partir de uma preocupação completamente distinta, se interessa não em contar uma história sobre o nascimento de Jesus, mas em dizer de sua origem última, e aponta para a encarnação do Verbo de Deus. Em João, O Verbo está diante de Deus e é Deus, e se encarna, e é identificado como Jesus. Ou seja, para João Jesus é Deus encarnado.
Seja como e qual for a história que cada evangelista conta (ou não conta) sobre o nascimento de Jesus, o que todos concordam é que Jesus era um sujeito histórico. Ele estava na beira do Jordão ao lado de João Batista, estava em Jerusalém, estava na Galiléia, nasceu em Belém ou em Nazaré, gostava de festa, comida gostosa, beber com os amigos... e morreu um belo dia, como todas as outras pessoas que já andaram sobre esta terra.
Jesus, que com João aprendemos ser Deus, era feito de carne, ossos, cabelo, suor, sangue, sentimentos, músicas que não saíam da cabeça, piadas, caminhadas, sol no rosto, fome, festa, amigos.
A percepção sobre o significado do Natal não deixou de ser reelaborada ao final da redação do Novo Testamento. Na verdade, vários dos Santos Padres, nomenclatura utilizada para os grandes teólogos dos séculos I a IV, compuseram textos teológicos e litúrgicos sobre o fato da encarnação de Deus em Jesus. A Encarnação sempre foi um dado teológico primordial, e de maneira talvez trágica o fato é que a Páscoa não teria acontecido da maneira como a compreendemos – com a morte e ressurreição de Jesus – se o mesmo não fosse de carne, não fosse mortal, não tivesse nascido. Natal e Páscoa caminham juntos no nosso horizonte de compreensão do Mistério de Jesus, Deus encarnado, Deus que se fez carne, gente, pessoa histórica. Tal elaboração patrística chega até à Idade Média em forma concluída, e há pouca divergência desde o século VI em diante a respeito do fato de que Jesus seja gente, seja pessoa humana, e também Deus encarnado.
Mais tarde, no século XVI, o famoso compositor romano Palestrina compôs um moteto sobre um texto litúrgico então corrente (dizem que talvez desde o século X) e que está presente na versão romana da Oração das Horas, pelas manhãs.
O mesmo texto é o seguinte:
O Magnum mysterium et admirabile sacramentum ut animalia viderent Dominum natum jacentem in praesepio!
Beata Virgo, cujus víscera meruerunt portare Dominum Christum. Alleluia.
Este texto chama-se “Magnum Mysterium”, e tem muitas outras versões musicadas além da de Palestrina, desde versões em canto gregoriano até versões contemporâneas. Em especial, há uma versão que “imita” canto gregoriano com a adição de algumas dissonâncias barrocas de 1998, por Morten Lauridsen, que tem sido utilizada na Liturgia de algumas comunidades da Episcopal Church, Igreja Episcopal estadunidense, nossa igreja mãe. Recomendo que você procure nas plataformas digitais esta versão de Lauridsen em coral para ouvir na manhã de Natal! Mas o que me interessa mais agora é o texto desta oração. Eu traduzo-a da seguinte maneira:
Ó grande mistério e sacramento admirável, que os animais tenham visto o Senhor nascido deitado na manjedoura!
É bem aventurada a Vigem, cujas vísceras mereceram transportar o Cristo Senhor. Louvemos o Senhor!
Manjedoura é uma palavra que perdeu um pouco de seu sentido em português. Vem de manjar, comer. É o cocho onde comem os animais.
Esta oração celebra o mistério sacramental de que o Senhor, ao nascer, foi colocado na posição de comida. E não nasceu e se revelou como comida apenas para os humanos: ele é assim visto pelos animais que o vêem deitado em seu cocho. Assim que nasce, ele é colocado por sua mãe (narra Lucas 2:7) em um cocho, e este foi o primeiro sinal aos pastores, para que o pudessem identificar: “isto vos servirá de sinal: encontrareis o recém nascido envolto em faixas e deitado num cocho”(Lc 2:12).
O texto anônimo de Magnum Mysterium celebra a ironia de os animais que estavam naquele estábulo junto com Jesus e Maria e José terem visto o sinal antes dos pastores. Eu particularmente não duvido que esta redação do texto (há algumas outras versões, com poucas variações, em outros formulários que não a “Liturgia das Horas” romana) seja um pouco mais tardia que o século X, talvez em torno do século XIV, quando o modelo de “presépio” proposto por Francisco de Assis estava já bastante difundido na Europa Ocidental, contando com um burro, um boi e ás vezes uma ovelha e O Menino numa manjedoura, cercado pelos pais. Se pudermos datar este texto nesta época, a ironia que o mesmo texto traz ganha muitas outras camadas interessantes de reflexão: numa época em que se vão acentuando as cisões na igreja ocidental, o que resultará na Reforma, os dirigentes (pastores) das diversas tendências eclesiais procuram um sinal que o rebanho, isto é, o povo, formado de diversas espécies (bois, burros, ovelhas) já sabe identificar: Jesus é o alimento do rebanho, não dos pastores. E isto é um sacramento admirável, um grande mistério!
As ovelhas e bois e eqüídeos conseguem ver o sinal primeiro porque compõem o local que acolhe Jesus. Jesus não nasce, primeiro, no meio das pessoas, mas num estábulo, no “lugar dos animais”, pois como descreve Lc 2:7, “não havia lugar para eles dentro das casas.”
A encarnação não é um dado sobre a humanidade, mas sobre a criação como um todo. Ao se encarnar, Deus não o faz para ser um sinal de esperança para as pessoas que estão dentro de casa, mas para as que estão fora, como ele também está fora. E, ao chegarem perto do estábulo, o que os pastores vagantes como o próprio Jesus encontram é a cena na qual o filho de Deus está disposto a se colocar no lugar da experiência carnal comum, não somente entre todas as pessoas, mas também comum a todos os animais: todos nós comemos. Este é o sacramento.
Este quadro convida ao segundo, pintado pelo verso seguinte: é bem aventurada a Virgem cujas vísceras foram o transporte de Nosso Senhor.
É muito habitual utilizarmo-nos de uma linguagem poética e meio asséptica para falarmos da realidade maternal de Maria quanto a Jesus. Fala-se do “seio”, do “ventre” de Maria. “Jesus nasceu do seio de Maria.” É até bonito, mas é inexato. Jesus nasceu das vísceras de Maria.
Eu assisti o parto do meu próprio filho, e antes dele de muitos animais diferentes, desde a minha mais tenra infância. Na verdade, em parte sou um pouco frustrado de não ser veterinário, mas estou superando bravamente. Me impressionou, no parto de meu filho, perceber que era muito parecido com o parto de cachorros, gatos, bezerros, potros, peixes (há vários peixes vivíparos, ou seja, que “parem” seus filhotes), ou a saída de pintinhos e patinhos e aranhas e caramujos de seus ovos... todos nós, animais, nascemos de um jeito muito semelhante. De uma modo especial, nós animais mamíferos nascemos de um jeito ainda mais semelhante, mediante o parto, mecanismo que compartilhamos apenas com alguns poucos répteis e peixes.
Todo parto é visceral. Nascer e dar à luz é uma experiência visceral. Envolve o útero, o canal do parto, a vagina, os intestinos, a bexiga, os músculos abdominais. Sai sangue, muito sangue. Há muita laceração de muitas estruturas pra uma mãe colocar um filhotinho no mundo. E o bebê-filhote também tem de fazer seu trabalho. Lembro que meu filho nasceu com a cabeça toda amassadinha devido ao ajuste dos ossos cranianos, que quando a gente nasce (sabemos) são soltos.
No nosso caso, o bebê quando nasce, tem seu cordão umbilical cortado e idealmente deve ser colocado em cima do corpo da mãe, no seio mesmo, ou ao lado, para que ela o abrace. E ele reconhece a mãe imediatamente. Não sei o que José sentiu no nascimento de Jesus... acho que ele até teve um papel bem mais decisivo que eu, afinal estavam sozinhos... mas no parto do meu filho eu não fiz grande diferença. Estava ali meio que de assistente. Certamente José teve um papel bem mais central que o meu... Mas de todo modo, aposto que Jesus só parou de chorar quando foi colocado no peito de Maria, e ela o abraçou e disse “meu filho, como você é lindo!!”
Nascer, viver, ser gente, ser bebê, ser pai, ser mãe, são experiências viscerais, que não se resumem ao “seio” ou ao “coração”... são carne. Essas idéias sobre a carnalidade de Jesus estão presentes no livro “Os crimes do Padre Mário”, que sairá em 2022 pela Livraria e Editora Anglicana... valerá a pena ler, quando for publicado... não perca de vista estas reflexões sobre a carne de Jesus que estão lá, no capítulo sobre Maria, outra pessoa feita de carne.
Carne que sangra, que mais tarde há de se curar. Bebê que chora, que mais tarde há de crescer e correr pelas ruas e campos da Galiléia.
Pai que chora e fica aliviado de ver que está tudo bem e que trabalha duro e sofre calado pra poder garantir condições de sobrevivência ao filhinho galileu.
Família que logo se fará refugiada, fugindo da violência dos poderosos da terra, andando a pé com um jumentinho e um bebê de colo, como narra Matheus sobre a fuga para o Egito.
Natal... Deus se faz vísceras, carne, sangue, sol no rosto, corrida com os amiguinhos, brincadeiras, medo dos soldados, pão fresco quando tem, fome quando não há pão, água para toda sede, sede imensa quando falta água, joelho ralado, unha quebrada, cabelo por lavar.
O Natal deveria nos despertar para nossa humanidade, e ao olharmos o menino no presépio, sentirmo-nos, como os animais, convidados a nos alimentarmos dele, entendermos que ele veio nos alimentar em nossa carnalidade, que ele está encarnado, que ele não se desencarnará jamais!
Este é um grande sacramento! Louvemos o Senhor... Jesus é o grande sacramento de Deus para a humanidade sobre a própria humanidade que esquecemos. Sobre nossas vísceras! E como são bem aventuradas as vísceras que criam espaço em si mesmas para transportarem a humanidade da qual Nosso Senhor desejou participar!
Por isto tudo, penso, afinal, que ao contrário do que muitos discursos desencarnadores pregam em nossas igrejas, dizendo que o Natal é tempo de ir no culto, de pensar em Jesus, de rezar muito... o Natal é dia de ficar em casa com a família, de comer coisa gostosa, de dar presente, de dançar, de ter atrito familiar, de engolir em seco com os absurdos que os parentes falam, de passar constrangimento! Natal é tempo de víscera!
É tempo de encarnarmos de novo, porque perdemos o tempo todo nossa própria carne de vista, num horizonte de sonho e plano e sofrimento sobre um futuro que não é o doce e saboroso e visceral agora, com todos os seus sofrimentos e limitações e alegrias e felicidades próprios e próprias.
É tempo de comidaria, festança, presente, festa! Se a sua comunidade for um lugar onde essa festa continua, vale a pena ir, mas com a sua família. Se, no entanto, pra você for um peso ir na comunidade, vá só rapidamente ou nem vá! Não perca sua humanidade de vista, não deixe que uma religiosidade distante da festa, víscera, emoção e carne retire você da festa da encarnação.
Até as estrelas brilham mais forte e desviam magos poderosos de seus afazeres especulativos sobre o futuro trazendo-os para o agora do menino pobre no cocho.
Os meninos pobres e desalojados de hoje devem fazer nossas vísceras tremerem, igualmente. As famílias refugiadas e perseguidas devem fazer nossas entranhas se moverem de amor e acolhida, igualmente. A humanidade continua...!
Celebremos! Nosso sinal está dado! Um menino foi colocado, frágil, num cocho por sua mãe pobre para que a gente se lembre e não consiga se esquecer que o alimento de nossa humanidade é nos redescobrirmos humanos, húmus, terra, barro, pó, a mesma substância compartilhada com todas as espécies vivas do planeta.
Esta é, mais que o carnaval, a festa da carne! Encarne-se! Celebre!
E ao longo do ano, a cada percalço se lembre: tudo isto é sacramento profundo e misterioso de Deus. Somos sua imagem e semelhança, que foi assumida por Ele mesmo em Jesus, o rosto divino da humanidade e rosto humano de Deus.
Desejo, em nome de toda a equipe do CEA, um abençoado e santo Natal, feito de vísceras, amores, festa, dança, ceia, esperança e acolhida. Que toda pedra seja tirada do caminho e toda lágrima desapareça, mas que existam para serem retiradas e enxutas.
E, até que a gente possa se ver de novo, como igreja, com muito abraço, beijinho, refeição compartilhada e vida, que o Príncipe da Paz lhe carregue em seus braços carnais, lhe ajudando a viver a doce alegria de descobrirmos que a vida consiste em um dia após o outro.
Feliz Natal!!
[+] Clique aqui e baixe o texto na versão pdf.
Pela Equipe do CEA,
Revdo. Dr. Julio Eduardo dos S. R. Reis Simões
Diocese Anglicana do Rio de Janeiro
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