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É possível pensar/vivenciar a Páscoa em tempos de COVID 19?
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É possível pensar/vivenciar a Páscoa em tempos de COVID 19?
Bispo Dr. Humberto Maiztegui
1. A pergunta
Esta pergunta, à qual acrescentei “vivenciar”, no sentido da anamnesis (vivência da tradição/memória), surge da inquietação das lideranças do Distrito Missionário Anglicano da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, que me convidou para um encontro onde pudesse apontar elementos que ajudassem neste sentido.
A preocupação destas lideranças desta parte da igreja confrontada de forma permanente com profundos desafios missionários, certamente não é somente destas pessoas, mas de muitas outras que, especialmente aquelas com vivências mais tradicionais, que entendem estes momentos como algo em si “meramente espiritual”, sem muitas conexões com nossos contextos específicos, entre eles este genocídio em andamento que é a situação da pandemia no Brasil.
Parto de uma “teologia do não-saber” pelo que, não me sinto em condições de apresentar uma resposta, muito menos uma solução. Mas, posso contribuir, como cada uma de nós pode, com elementos que nos ajudem a encontrar caminhos e saídas para a vivência desta memória libertadora em nosso contexto.
2. Páscoa é passagem, saída de uma realidade para outra
Na tradição cristã chamamos a memória da Ressurreição de “Páscoa”. A Páscoa é, portanto, o processo de libertação da opressão e escravização do Egito (cf. Êx 1-15). Uma palavra hebraica que significa “passagem”. Para “passar” é necessário um lugar de onde se sai e outro para onde se vai. A saída é consequência da dor, do sofrimento causado pela realidade opressiva e mortal: “E agora, eis que o clamor dos filhos de Israel é vindo a mim, e tenho visto a opressão com que os egípcios os oprimem” (Êxodo 3.9).
No caso da revelação do Deus Libertador do povo “hebreu” (hapirú = escravizado) era uma passagem – pelo mar - que servia de “dobradiça” como diz o Arcebispo Rowan Williams (cujo texto será citado a seguir), entre a situação de sofrimento, opressão e morte e a construção de uma nova estrada (Êxodo = estrada afora = saída) para uma realidade de vida (terra de leite e mel). Então, a passagem pelo mar é a dobradiça entre a situação opressiva e a nova caminhada (ainda difícil) com a visão do horizonte de uma nova realidade de vida para todas as pessoas.
Ao chamarmos a Ressurreição de “Páscoa”, portanto, incluímos esta memória, este sentido, e devemos perguntar, de onde estamos saindo e para onde estamos indo. Quais são os sinais de morte, ou processos de morte, presentes em nossa realidade e como o processo da Cruz/Ressurreição aponta para saídas e novos horizontes de esperança. O que torna a pergunta que origina este estudo, muito pertinente, e absolutamente necessária neste momento que vivemos.
3. A proposta lançada por Rowan Williams no livro Ressurreição
Este texto, aqui citado, faz parte de um material de reflexão, que destaca este texto e coloca algumas perguntas. Este material, em inglês, está disponível em http://docshare04.docshare.tips/files/13492/134927573.pdf. Vamos ao texto:
“Mesmo nos Evangelhos, uma coisa nunca é descrita. Existe um silêncio central (...) sobre o evento da ressurreição. Até Mateus, com seu elaborado cenário mitológico, nos deixa com a estranha impressão de que a pedra foi rolada para longe de uma tumba que já está vazia (...). É um evento que não é descritível, porque é justamente aí que ocorre a expansão transfigurada da humanidade de Jesus que é o coração de encontros de ressurreição. É um evento na fronteira de qualquer linguagem possível, porque é o momento em que nossa fala é deixada para trás e são abertas novas possibilidades. Isto é tão indescritível quanto o processo de fusão imaginativa que produz qualquer metáfora; e os evangelistas também se afastaram destes pensamentos.
(Por outro lado) A vida de Jesus é histórica, descritível; os encontros com Jesus ressuscitado são históricos e (de certa forma) descritíveis, com algumas ambiguidades e obscuridades. Mas, existe o sentido em que a ressurreição de Jesus se apresenta como a dobradiça entre as duas histórias, um ato que traz a última dentro da primeira: o ato que traz o que vem depois e o que se passou, não é um evento, com antes e depois, ocupando um determinado tempo entre Sexta-Feira e Domingo (...) sem importar quão cedo que corramos para o túmulo, Deus terá estado lá à nossa frente (...) ele foge decisivamente do nosso alcance, da nossa definição e nossa projeção”.
A proposta de Rowan Williams é que o mistério do túmulo vazio não resume a Ressurreição. A Ressurreição é um processo, que só pode ser entendido e vivenciado como anti-processo de morte, processo de vida, como a total superação do processo representado pela Cruz. Jesus não estar lá é o que abre o novo processo entre a morte e a vida. Por ser processo, caminhada, construção, Jesus vai na frente, projeta reencontros.
4. Onde estamos, para onde ir?
O povo brasileiro foi crucificado mais uma vez, sendo agora a maior vítima do COVID 19. Mais um genocídio que se soma ao indígena (cujas terras vêm sendo tomadas e arrasadas sem parar, há mais de 500 anos) e o genocídio negro (que lembra dos corpos e vidas sequestradas, escravizadas, reprimidas, mortas, jogadas na miséria e o abandono e assassinadas até hoje). Os túmulos, além desses mais de 300.000 das vidas levadas pelo COVID e pela falta de políticas públicas adequadas.
Choramos também outras mortes: a floresta queimada, as balas perdidas, as execuções sumárias pelas forças do Estado, e falta de condições de vida nas periferias, os povos indígenas jogados à margem da estrada, o campesinato sem a terra, a população urbana sem teto, a violência de gênero a LBTQIA+ fobia e as mortes geradas pelo abandono de crianças, pessoas idosas e pessoas com deficiência. É nesses túmulos que o anjo nos espera para dizer que não está aqui Ressuscitou... Convidando para voltar para Galileia, ao ponto de partida de todas essas realidades, a experiências organizativas e comunitária, de onde partimos para a Missão de Deus na Casa Comum (Mc 14.28; Mt 26.32).
5. Ampliando as referências da Ressurreição/Páscoa como processo de vida
As aparições do Ressuscitado são posta em marcha deste processo, mostrando a forma como a comunidade de discípulas e discípulos iriam seguir o caminho da vida enfrentando as situações de morte.
5.1 O processo da ressurreição mudando o sentido da caminhada
Uma referência que evidência a Ressurreição como processo, após o evento, é o Caminho de Emaús (Lc 24.13-35). Um processo onde Jesus Ressuscitado faz a dobradiça entre a frustração do casal que caminha desistindo do projeto de vida, e através do sentido dado à revelação e do partir do pão, recoloca estas pessoas no caminho da vida, fazendo que retornem ao convívio da comunidade. Este texto que animou nossa Campanha da Fraternidade, a leitura orante da Bíblia e tantos outros processos.
5.2 Superando a incredulidade
O Evangelho que resgatou primeiro a narrativa de Jesus, que é da comunidade de Marcos, trabalho muito a dificuldade que as pessoas que seguiam Jesus tinham de entender como os processos de morte poderiam ser superados por processos de vida. Em Marcos 16.14 diz assim: “Finalmente apareceu aos onze, estando eles assentados juntamente, e lançou-lhes em rosto a sua incredulidade e dureza de coração, por não haverem crido nos que o tinham visto já ressuscitado”. Portanto, o processo de ressurreição nos desafia a mudar o olhar! O ressuscitado não é facilmente reconhecido! A falta de reconhecimento do ressuscitado espelha a falta de confiança no poder da vida contra as forças da morte. Portanto, o processo da ressurreição exige confiança na vida, na comunidade, na caminhada e nas ações que emergem desta nova relação.
5.3 A partilha do alimento, a comensalidade, como base do processo
Como no caminho de Emaus, em João 21.12-24 há uma aparição do ressuscitado onde ele serve o alimento que é fruto do trabalho destas pessoas (pão e peixes). Lembrando certamente a partilha com a multidão faminta (João 6.1-13), ainda narra que estas pessoas não ousavam perguntar-lhe “quem és tu?”. Mas, ao realizar a partilha da comunhão do fruto da Casa Comum, então lhe reconheceram. Portanto, o processo da ressurreição deve passar necessariamente pela partilha concreta do que temos, do que somos, do que recebemos, entre todas as pessoas, especialmente aquelas com fome e sede. É neste processo que se faz possível acreditar na vitória da vida sobre a morte.
5.4 O processo da ressurreição na Igreja de Cristo
Assim como fizemos com os textos anteriores poderíamos ir fazendo com cada texto onde a ressurreição é mencionada, descobrindo ali processos, e através destes descobrindo e nos desafiando para nossos próprios processos em cada realidade de morte a ser superada pelo novo processo da vida.
Apenas como exemplo, escolhi o texto do apóstolo Paulo aos Romanos, justamente por ser um texto dirigido a uma comunidade que se formou no centro do poder promotor da morte, e por ser uma comunidade que o apóstolo nunca tinha encontrado pessoalmente. Então lemos na Carta aos Romanos:
“Porque, se fomos plantados juntamente com ele na semelhança da sua morte, também o seremos na da sua ressurreição; sabendo isto, que o nossa humanidade velha foi com ele crucificada, para que o corpo do pecado seja desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado. Porque aquele que está morto está justificado do pecado. Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos; sabendo que, tendo sido Cristo ressuscitado dentre os mortos, já não morre; a morte não mais tem domínio sobre ele”. (Romanos 6.5-9).
O apóstolo desafia a comunidade a participar de todo o processo: a acompanhar Jesus em sua morte e, com ele, chegar à ressurreição. Isso quer dizer como “semelhança”. Jesus é vítima do instrumento de morte de um império opressor e cruel (isto é a Cruz). Ele não morre sozinho, morre junto a dois “bandidos” que o próprio Jesus não julga, nem pede arrependimento, apenas acolhe aquele que acredita na vitória da vida sobre a morte, mesmo condenado. A humanidade velha é essa condenada à morte (como disse o genocida de plantão: “tudo o mundo morre”). A nova, aquela que se faz possível pela ressurreição, é outra humanidade que não se entrega à condenação da morte, mas que morre para este pensamento e sentido da existência e abraça com Cristo o caminho da vida. Neste momento já há uma libertação, a partir deste momento a comunidade já faz parte de um novo processo e com essa nova humanidade enfrenta e supera os processos de morte até derrota-los, como fez Cristo na Cruz, definitivamente.
6. Seguir enfrente rumo ao horizonte
Celebrar a Ressurreição/Páscoa e redescobrir, no meio dos gravíssimos e doídos sinais de morte, os caminhos de encontro com o Ressuscitado. Sermos sinais de vida em nossa ação profética, solidária, acolhedora, recriadora, pois é ali que Sua presença será revelada e a dobradiça poderá ser acionada para sairmos da condenação e abraçar a salvação, sairmos da frustração e abraçar o esperançar, sairmos da derrota e encontrar as vitórias, sairmos da falta de tudo e irmos para a partilha de tudo. Enfim, celebrar a Páscoa!
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